Ouvi um tanto de vezes: “Por aí, assim o queijo fica bem partido”. Situação encaminhada de forma satisfatória, com senso das proporções. Ainda: “Caso sem saída, queijo mal partido”. Equivale a situação resolvida sem levar em conta todos os fatores, cada um na devida proporção. O caso da NATO corre risco de virar queijo mal partido, com efeitos enormes — quem sabe apocalípticos — ao longo das décadas.
O presidente Donald Trump, em sua primeira viagem internacional, foi a Riad, Jerusalém e Roma, onde participou da reunião do G-7 e ainda visitou alguns países da Aliança Ocidental. Mais uma vez, o compromisso norte-americano com a defesa da Europa deixou a desejar. E a menor trinca nesse copo alarma.
Um destaque. Em discurso no novo quartel general da NATO, Trump evitou mencionar o artigo 5 do Tratado, que era o ponto esperado, até mesmo por sua equipe de segurança. Nele se afirma: “As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas, e, consequentemente, concordam em que, se tal ataque armado se verificar, cada uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou coletiva, […] prestará assistência à Parte ou Partes assim atacadas, praticando sem demora, individualmente e de acordo com as restantes Partes, a ação que considerar necessária, inclusive o emprego da força armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte”.
A omissão, deixando pairar no ar a hipótese do descompromisso e distanciamento, enraizou desconfianças que já existiam desde a campanha eleitoral. Por exemplo, os Estados Unidos não mais defenderiam uma pequena nação agredida pela, nem precisaria dizer, Rússia?
Nessa mesma ocasião, a chanceler Ângela Merkel, ecoando preocupação comum entre europeus, declarou: “Os tempos em que podíamos contar inteiramente com o apoio de outros de alguma maneira já estão no passado. Tive esta experiência nos últimos dias [ela havia se encontrado com Donald Trump recentemente]. Tudo o que posso dizer é que nós, europeus, devemos tomar nosso destino em nossas próprias mãos, naturalmente com relações amigas com os Estados Unidos e Inglaterra. […] até com a Rússia. Mas precisamos reconhecer que devemos lutar pelo nosso futuro como europeus”.
A principal queixa de Donald Trump é de que os europeus, em especial os alemães, não estão pagando o que seria razoável [fair share]. Enriqueceram, são os maiores interessados, mas relutam em meter a mão no bolso. E ainda de que a Alemanha tem um superávit comercial gigantesco com os Estados Unidos.
“Temos um gigantesco déficit comercial com a Alemanha e, além disso, os alemães pagam muito menos que deveriam para a NATO e em despesas militares, isso vai mudar”, tuitou o Presidente. Tem razão. Em 2016, o déficit foi de 67,8 bilhões de dólares. Os Estados Unidos utilizam 3,6% de seu PIB em gastos militares (75% do orçamento da NATO estão nas costas do tio Sam). A Alemanha gasta 1,2%. Em 2014, os então 28 membros da NATO prometeram empregar 2% do PIB em despesas militares. De momento, apenas cinco dos agora 29 membros cumprem tal meta.
Afirmei que Trump tem razão. Pergunto: tem inteira razão? Busco o ditado francês le ton fait la chanson — o tom muitas vezes é mais importante que o conteúdo da canção. Complemento da minha pergunta: está bem calibrado o tom da exigência? É hora própria? Tenho cá minhas dúvidas
A NATO começou com o Tratado de Bruxelas, aliança contra a ameaça soviética, assinado em 17 de março de 1948 por Bélgica, Holanda, Luxemburgo, França e Reino Unido. Veio o bloqueio de Berlim e o golpe de Praga. Na atmosfera de Guerra Fria, os Estados Unidos se juntaram aos europeus; em 4 de abril de 1949 foi firmado o Tratado do Atlântico Norte [foto ao lado]. Além dos cinco países acima referidos, a nova aliança incluía Estados Unidos, Canadá, Portugal, Itália, Noruega, Dinamarca e Islândia. Em 1952 a Grécia e a Turquia, e em 1955 a Alemanha se uniram à NATO. O objetivo primeiro sempre foi ser uma barreira contra as agressões do comunismo soviético. Em resposta, a Rússia criou em 1955 o Pacto de Varsóvia.
Com a queda do Muro de Berlim, o fim do Pacto de Varsóvia e a reunificação alemã, o quadro se modificou rapidamente. Hoje a NATO abarca 29 países, além de três na fila: Bósnia-Herzegovina, Geórgia e Macedônia. Debaixo do guarda-chuva dos Estados Unidos eles se protegem das investidas do expansionismo russo, do jihadismo islâmico e dos ciberataques. E se o guarda-chuva se fechar? Desamparados, para onde rumarão?
Não custa lembrar, mutatis mutandis, que os Estados Unidos, como protetores da ordem, representam hoje o que no passado foram o Papa e o Imperador do Sacro Império: asseguravam a existência normal da Cristandade. A Europa é o que restou da Cristandade. Ali estão os países de raízes cristãs, seus herdeiros, ou — se quisermos — a civilização ocidental e cristã, expressões que evocam a origem medieval. Temos realidade mais fundamental para a perenidade da Fé e da civilização? A discussão de reivindicações justas em ambiente acerbo, enquadrada por horizontes limitados, facilmente criará caldo de cultura para um pulular de ressentimentos e dilacerações de toda sorte.
Na presente quadra histórica, o esfacelamento da NATO pode gerar efeitos parecidos com o fim do Império Romano em 476, também ele exercendo funções políticas com traços comuns às discutidas acima, tutela do espaço de convivência civilizada na Antiguidade. Abriu as portas para invasões e período de grande instabilidade. Esse queijo de agora precisa ser muito bem cortado.