Barafunda. Austrália, Estados Unidos, França e Inglaterra estão em um tremendo forrobodó diplomático. Não sou australiano, nem cidadão de qualquer dos países acima mencionados, em princípio nada tenho a ver com a embrulhada entre eles. Só em princípio. Na prática, tenho e muito; todo mundo tem. Veremos abaixo, é questão de vida e morte para cada um, assunto de repercussão mundial. Assim, ainda que não me veja diretamente envolvido, embora não seja “apenas um pobre homem da Póvoa de Varzim” e seja na verdade apenas um pobre homem de Pará de Minas, o tema me interessa muito, como deve chamar a atenção de todos os pobres homens da Terra.
Contrato do século. Adiante. Contas feitas, os maiores e mais próximos interessados no caso são os australianos. Estão certos? Agiram bem? Se eu fosse um australiano, o que estaria pensando? Vamos aos fatos. Em 2016, o governo da Austrália contratou na França a construção de doze submarinos diesel-elétricos, contrato na ocasião de mais de 40 bilhões de dólares. Os custos andaram subindo muito, já há gente que fala em negócio de 70 bilhões de dólares, até mais. De fato, não é possível planejar com segurança o custo da construção de 12 submarinos, manutenção, adaptação de portos, fornecimento de peças ao longo de décadas. Na França, era comum a qualificação de “contrato do século”, “casamento de 50 anos”. Era também aliança estratégica; a França tem cerca de dois milhões de cidadãos na região indo-pacífico. De repente, quando menos se esperava…
Contrato cancelado. Em 15 de setembro passado a Austrália anunciou que havia rompido o contrato com os franceses e concluído uma aliança estratégica com os Estados Unidos e a Inglaterra para a construção de submarinos com propulsão nuclear. Pela primeira vez os Estados Unidos irão compartilhar sua tecnologia de propulsão nuclear com um país que não seja a Inglaterra. Até aqui, uma parte da realidade.
Nova aliança na região indo-pacífico. Na verdade, o que aconteceu foi enormemente mais amplo. Estados Unidos, Inglaterra e Austrália anunciaram ao mesmo tempo a constituição de uma aliança estratégica de segurança e defesa (AUKUS alliance ou AUKUS partnership — em tradução livre, aliança ou parceria da Austrália, Reino Unido e Estados Unidos) com efeitos ao longo dos próximos anos e até décadas à frente, cujo adversário, óbvio, é a China Comunista. Congruente, a China reagiu furiosa com o anúncio de tal aliança — “mentalidade anacrônica de guerra fria” e ameaçou os australianos a “que se preparem para o pior”, dando a entender, de início, seriam retaliações de ordem comercial. O Japão manifestou seu contentamento. Stephen Lovegrave, conselheiro para a Segurança Nacional do governo inglês, comentou que a aliança é o “mais significativo acordo de colaboração das últimas seis décadas”. Biden enfatizou a necessidade de manter “a região indo-pacífico livre e aberta”. Em 24 de setembro, o Presidente norte-americano coordenará reunião inicial do Quad — bloco que envolve, além do Japão, Estados Unidos, Austrália e Índia. O primeiro efeito prático de tal aliança será a construção para a Austrália pelos Estados Unidos e Inglaterra de submarinos mais potentes, menos detectáveis pelo inimigo, com maior capacidade de destruição por causas do armamento mais letal e moderno que carregarão, fornecido pelos Estados Unidos. Logicamente, o contrato com a França deixou de ter sentido; foi cancelado. Claro, haverá perdas e danos, multas e muita coisa mais. Mas os submarinos novos da Austrália serão construídos nos Estados Unidos e na Inglaterra. A movimentação diplomática em curso tem potencialidades para a constituição de organismo semelhante à NATO na região indo-pacífico.
A posição australiana. O que acham do caso os australianos? A Austrália está no mundo anglo-saxão. Tem antigas e privilegiadas relações com os Estados Unidos e com a Inglaterra — com os Estados Unidos, aliada tradicional, até em guerras; com a Inglaterra, além de numerosos e forte laços, compartilham a mesma Chefia de Estado, hoje exercida pela rainha Elisabeth II; são membros da Commonwealth. Mais importante e urgente, a Austrália não estava sentindo firmeza na posição francesa diante da crescente ameaça chinesa na região. O presidente Emmanuel Macron repetidas vezes tem dito que é preciso encontrar um caminho próprio entre as duas superpotências, Estados Unidos e China, O governo australiano resolveu cair fora; pulou do barco da até então vigente aliança com a França, sente-se mais seguro se contar com o poder e a determinação dos Estados Unidos e da Inglaterra juntos.
Não é de hoje. Em 9 de janeiro de 2018, três e meio anos atrás, postei na rede artigo intitulado “Entre lá e cá, muita diferença há”. Elogiava a atitude firme do governo australiano diante do expansionismo (melhorando, imperialismo) chinês e a contrastava com a atitude cega, concessiva e entreguista do governo e de boa parte dos setores dirigentes brasileiros. Lá firmeza. Aqui, entreguismo. Comentava eu quase quatro anos atrás: “Lá. No geral, a Austrália toma medidas sérias, são feitas reuniões no Congresso dos Estados Unidos para tratar do assunto. Um dos mais importantes institutos de análises de riscos coloca a ascensão da China como o maior risco de 2018. Cá. No Brasil, muitos gabarão os investimentos chineses (mutismo sobre o comando deles por governo e Partido Comunista chinês). Serão comuns hosanas à habilidade de nossos diplomatas, governo e empresários no fortalecimento dos laços comerciais com a China. Nada ou quase nada se encontrará sobre a cautela que toma a Ásia, setores da Alemanha e dos Estados Unidos. As muitas diferenças entre lá e cá não nos lisonjeiam. Na cara, sintomas de despertar. Na coroa, superficialidade, cegueira e desleixo; deixo de lado cumplicidades eventuais”. O despertar continua, gerou situação nova, com promessas alvissareiras.
Se eu fosse um australiano. Se eu fosse um australiano, sentir-me-ia menos ameaçado, com melhores perspectivas de progresso em liberdade para meu país, já que melhor garantido pela nova aliança. Isto quanto ao conteúdo. Quanto à forma, talvez experimentasse reservas. Talvez, pois estou muito longe do cenário dos fatos para a respeito ter juízo claro. De qualquer maneira, continua importantíssima a aliança com a França (e com a Comunidade Europeia, também indiretamente contundida pela nova situação). É claro, aliança com a França e da França com Estados Unidos e Inglaterra, menos, mas analogamente arranhada. Por isso, em princípio, teria preferido outra maneira de agir. Repito, contentamento e aprovação quanto ao conteúdo, possíveis reservas quanto à forma na condução das ações que desembocaram num quadro mais tranquilizador para a Down Under. É quadro que interessa na carne viva aos australianos. Interessa na carne viva igualmente aos pobres homens da Póvoa de Varzim e de alhures. É isso.