Renato renasceu.
Calma, prezado leitor, você e Renato já se conhecem, apenas não houve uma apresentação formal, com os requisitos de praxe. Depois da conversa que eu lhe narrei na crônica passada (Aladim e a idade do avô, lembra-se?), o avô decidiu dar-lhe um “banho de natureza”. Não essa natureza maltratada por ecologistas urbanos, mas a natureza natural, sem imposições geradas em gabinetes movidos a ar condicionado.
Quando o ônibus chegou à cidadezinha, já os esperava com a charrete o primo Aurélio, dois anos mais velho. Nem precisaram de apresentação, logo passaram a agir como velhos amigos.
— Este seu carro é diferente. Onde fica o acelerador, a chave de ignição? Como é que fecha as portas? Não estou vendo onde entra o combustível.
— Espere um pouco, aqui a gente não precisa de autoescola, aprende rápido.
Durante a viagem de uma hora até a fazenda, Renato queria saber de tudo. Deu pulos de alegria ao ver como o cavalo puxava o “carro”. Ficou sabendo que o “combustível” era verde, estava dentro dele e entra pela boca. O avô observava com sorridente silêncio, contente ao ver que tudo corria bem sem a sua intervenção.
— Que bicho é aquele com duas pontas na cabeça?
— As pontas são os chifres daquela vaca, e o bezerro filho dela está bebendo o leite. Mas tem muito, e o que sobra a gente vende na cidade.
— Então o leite daqui é diferente. Eu só conheço leite de caixinha.
Aurélio era o mais velho de cinco irmãos. Benjamim, o pai, era o irmão mais novo do avô de Renato, e se tornara proprietário da fazenda da família, por acordo entre os irmãos. Havia um bebê de três meses, que encheu Renato de curiosidade.
— Por que fica todo embrulhado? Por que precisa ser carregado?
— Ele ainda não sabe andar, só vai aprender daqui a alguns meses.
— Ele leva tanto tempo para aprender?
— Todo mundo demora a aprender, só que a gente não se lembra do que aconteceu quanto tínhamos a idade dele.
— Mas aquele bezerro que nasceu ontem já está andando pra todo lado.
— É assim mesmo. Algumas coisas, o animal já nasce sabendo, mas a gente tem de aprender tudo com quem já sabe.
— Você também demorou a aprender? Como ficou sabendo que demorou?
— Observei o que aconteceu com meus irmãos, é tudo igual.
— Então é isso! E eu só não sei porque não tenho nenhum irmão.
Em pouco tempo, Renato já sabia andar a cavalo, jogar bolinhas de gude que não dão certo no asfalto, nadar no riacho, colher mangas e outras frutas, “passear” na gangorra de cipó, colher e cozinhar milho verde gostoso, pescar, andar de bicicleta, tratar de passarinho na gaiola, usar o estilingue e o bodoque…
— Você sabe que a nossa casa foi construída por escravos?
— Já ouvi falar de escravos, mas não sei bem o que é.
Depois da explicação, ele perguntou:
— O Zezinho é escravo?
Não, o bisavô dele foi escravo aqui na fazenda, e ajudou a construir a casa. Os parentes dele ainda moram aqui. Gente muito boa, de confiança. Os que são da nossa idade jogam bola e brincam comigo.
Céu limpo, temperatura agradável, canto alegre dos passarinhos eram convite irrecusável para um passeio pelos campos, e se estendeu até onde morava a família do Zezinho. A recepção não podia ser mais amigável e afetuosa, marcada por lembranças do passado distante e o reconhecimento pela mútua fidelidade das duas famílias. Apreciaram também a jaca, fruta que outros na vizinhança não tinham, e o cuité, uma espécie de xícara natural. Na volta, foram surpreendidos por uma chuva de verão, pesada mas passageira. Não havia casas nem abrigos por perto, e Renato sugeriu:
— Vamos para debaixo daquela árvore.
— Não adianta, porque árvore não protege da chuva, e também é perigoso.
— Perigoso por quê? Tem cobra?
— Papai sempre fala que árvore sozinha atrai os raios. E se a gente ficar muito molhado, não tem problema, depois seca. Melhor não correr, pra não escorregar.
Chegaram em casa com a chuva terminando, trocaram de roupa e ficaram se aquecendo perto do fogão a lenha. O avô percebeu que haveria choro e protestos quando tivessem de regressar à cidade, mas até se alegrou com a perspectiva.
Retornou sozinho à cidade dois dias depois. Seu programa para os próximos dias já estava bem definido: Reler com atenção A cidade e as serras, de Eça de Queirós. Queria avaliar se o neto (que já nem se lembrava do Aladim e outros brinquedinhos) agiria como o meu xará Jacinto de Tormes, personagem de Eça que fez viagem semelhante, e nunca mais voltou à sedutora e leviana Paris. Para o neto, tudo era novidade; para ele, tudo saudade. Se o neto resolvesse ficar…