Os males não são apenas políticos ou econômicos, mas principalmente de ordem moral. A crise de nossos tempos, como ensina Pio XI, é uma crise de instituições e de costumes. Enquanto não se reformarem os costumes, de nada valerão boas instituições.
Matéria publicada na revista Catolicismo, Nº 814, Outubro/2018
Qual é a concepção católica de Estado? É possível um Estado católico? O Estado desvia os homens do ensinamento perene da Santa Igreja? A Igreja pode contar com estadistas autenticamente católicos no Brasil de hoje? Estas e outras questões, de suma importância, Plinio Corrêa de Oliveira [foto] as explica, fundamenta e desenvolve no manifesto transcrito abaixo. Foi publicado em 1937 em “Legionário”, semanário que ele então dirigia, e que teve sua continuidade em nossa revista. Dele omitimos, por brevidade, apenas alguns trechos e fatos específicos daquele ano.
O Prof. Plinio aponta para o ideal de uma civilização católica com toda sua beleza e grandeza, pujante no campo temporal e espiritual, voltada a conduzir os homens nas vias das Leis de Deus. Realizaria assim a meta da Santa Igreja em relação à humanidade — conquistar a felicidade suprema, que é bem-aventurança eterna, depois de ter alcançado a felicidade possível nesta Terra.
Sendo a felicidade eterna o fim último dos homens, alcançá-la é um objetivo superior ao bem comum temporal. E como a finalidade precípua do Estado é proporcionar o bem temporal, realizá-lo de acordo com os princípios e objetivos da Igreja deve constituir para ele uma preocupação constante. Organizando assim a sociedade temporal, o Estado evita colocar em choque a consciência católica do País.
Várias décadas transcorreram desde a publicação desse manifesto, sem que a sociedade tenha caminhado nas sendas de tão alto ideal. Mas permanece inteiramente atual o princípio de que uma autêntica civilização só é possível quando a política é essencialmente católica dentro de um Estado católico.
Poderá a humanidade atingir com êxito o ideal de um Estado católico? Não devemos ficar apenas na admiração utópica dele, mas devemos lutar para que ele seja aplicado. Não basta defendê-lo na teoria, mas trabalhar como se a sua aplicação efetiva dependesse somente de nós, embora estejamos convictos de que ele não será alcançado sem a Providência Divina e suas bênçãos. Nada de bom será erguido sem o auxílio divino, pois “se o Senhor não edificar a cidade, em vão trabalham os seus construtores; se o Senhor não guardar a cidade, inutilmente vigia a sentinela” (Sl 126, 1).
Apos ler o memorável manifesto, o leitor verá que esse ideal não é uma falácia. Ele é realizável, verdadeiro e fundamentado, pois tem como base o ensinamento de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A renovação pela qual pugnamos deve atingir a Nação inteira, desde a alma de seus filhos até os fundamentos de suas instituições
♦ Plinio Corrêa de Oliveira
“Legionário”, Nº 265, 10 de outubro de 1937
O grau de desenvolvimento que o “Legionário” atingiu, atestado pelo interesse não raras vezes apaixonado que desperta em seus amigos e em seus adversários, impõe-lhe o dever de definir precisamente sua posição perante a situação política do Brasil.
As diretrizes que abaixo reproduzimos são o roteiro que resolvemos seguir, a fim de nos dedicarmos, entusiasticamente e sem reservas, à causa da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, da qual somos filhos obedientes e amantíssimos. De todas as atitudes que na hora atual podem licitamente assumir os católicos brasileiros, parece-nos que nenhuma é mais genuína e declaradamente católica.
Não defendemos, pois, uma vaga política cristianizadora ou uma política espiritualista mais vaga ainda. Ou o Brasil será salvo pelos princípios católicos, apostólicos, romanos, ou não haverá para ele salvação. Esta exposição de princípios e de fatos, que hoje damos a público, dirigimo-la aos católicos do Brasil inteiro, para que conheçam e compreendam o esforço de um grupo de moços que, com preterição de todas as vantagens materiais, perdoando ódios ostensivos e esquecendo silenciosas malquerenças, se empenham com um amor indizível a fazer triunfar o reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo nesta Pátria consagrada a Nossa Senhora Aparecida.
Este documento não é uma lição que pretendemos dar, mas uma explicação que oferecemos para estimular a solidariedade dos que nos aplaudem, esclarecer o espírito dos que nos combatem de boa fé e aguilhoar a consciência dos que nos hostilizam de má fé.
OS PRINCÍPIOS
1 — Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua Justiça, e tudo o mais vos será dado de acréscimo
Não é possível definir a posição do Catolicismo perante a política contemporânea, sem para isso recorrer às fontes luminosas donde brota toda a verdade que a Igreja ensina aos fiéis.
Graças à tutela exercida pelo magistério infalível da Igreja, a humanidade até hoje pode encontrar no Evangelho os princípios fundamentais da política cristã, isto é (para evitar todos os mal-entendidos a que o termo pode dar margem), católica, apostólica e romana. E a Igreja, por esse mesmo magistério que recebeu de Cristo, aplica tais princípios às circunstâncias diversas a cada época, de cada sociedade.
Muitas Encíclicas têm escrito os Papas, nesse sentido, para orientação dos fiéis. Entre elas, por ser uma síntese do ideal católico do Estado, merece particular menção a Immortale Dei, do grande Pontífice Leão XIII [ao lado].
No cumprimento de sua finalidade própria, a salvação das almas, a Igreja levou a humanidade a realizar, mesmo na ordem temporal, obras que não teriam sido possíveis sem a sua benéfica influência. O conjunto dessas obras forma, com o que constitui objeto da ação espiritual própria da Igreja, o que se denomina comumente a civilização cristã. Nunca é demais insistir que, não sendo uma civilização católica, não é autenticamente cristã.
Compreende-se que assim tenha sido. A lei moral, ensinada por Cristo para reforma da humanidade e sua salvação, implica numa série de instituições e de costumes que deveriam forçosamente fazer surgir uma nova civilização, constituindo desta a base ou o fundamento. Assim, por exemplo, a família monogâmica assente no casamento indissolúvel, elevado à categoria de sacramento; o respeito às autoridades civis; a educação religiosa de todos os cidadãos pela Igreja; e de modo mais amplo, todos os problemas que implicam relações entre os poderes espiritual e temporal etc.
Até mesmo se considerássemos apenas a reforma dos costumes privados, a Igreja deveria exercer essa influência sobre toda a civitas, isto é, a sociedade organizada num Estado. Tomemos dois exemplos. A caridade, fazendo ver em cada homem um irmão remido pelo sangue de Cristo, não podia deixar de pôr um termo à escravidão, tal como era entendida pelos antigos pagãos. A proibição da usura, em doutrina firmada pelos teólogos com fundamento no que ensinara Cristo, não podia deixar de impedir a agiotagem e o excesso de especulações que só mais tarde, quando os homens começaram a abandonar os princípios católicos, vieram infeccionar essa civilização surgida à sombra da Igreja.
Tudo isto mostra como, preparando os homens para a vida eterna, a Igreja permitiu, e mais do que isso, contribuiu positivamente para a organização da vida temporal da sociedade. Foi a Igreja que elevou a civilização ocidental a uma altura que, por certo, não teria sido atingida sem a sua ação. Confirmou-se assim a palavra evangélica: “Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado de acréscimo”.
Os princípios católicos, conquanto encerrem toda a verdade, não seriam suficientes por si mesmos para explicar o admirável surto da civilização que a Igreja consegue em todas as regiões onde se estende o seu apostolado. Se a pregação desses princípios não fosse seguida da distribuição dos sacramentos, que dotam a inteligência e a vontade humana com os recursos necessários para compreendê-los plenamente e lhes obedecer sem restrições, seria impossível a edificação de uma civilização católica.
Se imaginássemos à testa de um país os estadistas mais profundamente conhecedores da doutrina católica, mais desejosos de aplicá-los, e dotados do maior poder para levar a efeito este projeto, poderíamos estar certos de que tais estadistas pouco ou nada conseguiriam se não existisse no seu país a Igreja devidamente organizada. Talvez conseguissem edificar fugazmente uma civilização de aparência católica. Mas, comparada com a civilização autenticamente católica, ela seria como um manequim, que se parece com um homem vivo tendo da vida apenas a aparência.
2 — Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus
Pode-se, porém, falar em ideal católico de Estado? Há uma política que se possa dizer católica? Tem a Igreja uma doutrina política? Não poderão essas expressões levar à teocracia e a uma confusão entre os poderes espiritual e temporal, contrariando o ensinamento divino dado por Jesus Cristo ao lhe perguntarem os judeus se deviam pagar tributo a César?
Responder a tais questões não significa apenas assoalhar lugares comuns ou repisar conceitos já explicados mais do que suficientemente. É tal a ignorância religiosa dos próprios católicos hoje em dia, que bem poucos são capazes de tirar todas as consequências de certos princípios, que conhecem superficialmente, sem ir longe demais ou ficar na metade do caminho. Tratemos, pois, de esclarecer o quanto possível a questão acima. Para isso, façamos antes uma comparação entre a finalidade da Igreja e a do Estado.
A Igreja é uma sociedade constituída pelos fiéis do mundo inteiro unidos pela obediência ao Papa e aos Bispos, tendo por missão essencial a salvação eterna de toda a humanidade. A sua finalidade é, pois, conduzir os homens à bem-aventurança eterna, felicidade suprema e fim último de cada homem. O Estado é a organização política da nação, isto é, da sociedade civil unificada pela autoridade com o fim de realizar a felicidade temporal dos indivíduos reunidos nessa sociedade.
Há uma só Igreja, portanto, que transcende do espaço e do tempo e prolonga-se até a eternidade. O dogma da comunhão dos santos nos ensina que a Igreja gloriosa, no Céu, é a mesma Igreja padecente no Purgatório ou militante na Terra. Quanto aos Estados, há tantos quantas sejam as nações espalhadas pela face do Globo. Os Estados surgem, transformam-se, desaparecem segundo as vicissitudes da História, apresentando tipos os mais diversos.
Tanto a Igreja quanto o Estado (isto é, os Estados) visam fins necessários ao homem. Mas é bem de ver que o fim colimado pela Igreja é muito mais nobre, muito mais elevado, infinitamente superior ao de cada Estado. Todo homem foi criado para conhecer, amar e servir a Deus neste mundo, e depois gozá-lo eternamente no outro. Pela Igreja e na Igreja o homem conhece, ama e serve a Deus em sua vida terrena, para depois alcançar a bem-aventurança celestial.
Mas o homem não é apenas membro do Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja. É também membro de uma civitas, a sociedade temporal em que ele vive, onde trata de seus interesses terrenos, no convívio com os seus semelhantes, e onde recebe a influência espiritualizadora da Igreja. Sendo assim, deve obediência à autoridade civil existente nessa sociedade, sem a qual não seria possível a organização do Estado.
Interesses temporais são os interesses econômicos, higiênicos, policiais, uma série de condições que devem ser organizadas pelo Estado para assegurar a ordem na sociedade e a vida dos indivíduos nela reunidos. Bem comum é esse conjunto de condições necessárias para tornar possível a coexistência dos indivíduos e o seu desenvolvimento biológico, econômico, intelectual etc. Era uma expressão de uso muito comum entre os antigos escolásticos da Idade Média, mas o individualismo liberal a fez esquecer por algum tempo.
Essas sociedades, por sua vez, são formadas de outras pequenas sociedades (famílias, grupos profissionais, classes etc). O Estado é a sociedade toda, isto é, o conjunto desses grupos organizados sob a direção de uma autoridade. Deve auxiliar todos esses grupos e todos os indivíduos a realizarem o bem comum. Deve promover eficazmente esse bem comum, pela manutenção da ordem dos direitos individuais e sociais etc.
O Estado é a cúpula de todo o edifício social, seu complemento necessário. Complemento porque completa realmente a sociedade, torna-a apta para realizar todos os fins procurados pelo homem na ordem temporal. Por isso se diz que cada Estado é uma sociedade perfeita na esfera do bem comum temporal, como a Igreja é a sociedade perfeita na esfera do bem comum espiritual e supremo. O bem comum temporal e o bem supremo do homem, longe de se oporem e de serem coisas inteiramente separadas, são dois fins ordenados entre si, pela subordinação de um deles ao outro.
O bem comum temporal, fim do Estado, tem valor intermediário e inferior, embora capaz de determinar a formação de uma ordem de ação relativamente autônoma que pertence ao Estado. O bem supremo de toda a humanidade é, mais do que isso, um fim principalíssimo, ao qual todos os outros bens devem ser ordenados.
Como dissemos, o fim do Estado é de valor intermediário, e não simplesmente um meio. Portanto o Estado não deve ser considerado um simples instrumento da Igreja para o cumprimento da sua missão ordenada a um fim superior, pois a ordem temporal tem certas exigências próprias que formam todo o equipamento da política, e cuja engrenagem posta em ação promove a felicidade temporal da sociedade.
Mesmo não sendo um simples meio para a Igreja, o Estado tem um fim inferior e ordenado a outro. Não pode, pois, desviar o homem do seu fim supremo, da meta para a qual a Igreja conduz toda a humanidade. Neste sentido, o fim do Estado pode ser considerado um meio para a pessoa humana cumprir o seu destino transcendente.
Estabelecida essa distinção entre o temporal e o espiritual, respondamos às perguntas feitas acima: Há um ideal católico de Estado? Ou, dito de outra forma, existe um tipo de Estado católico? Tem a Igreja uma doutrina política?
3 — Instaurar todas as coisas em Cristo
Mais uma vez, é preciso distinguir. Conforme o caso, conforme o sentido dado a essas perguntas, deve-se responder afirmativa ou negativamente. A começar pelo conceito de Estado Católico.
O Estado é a própria sociedade organizada politicamente. Mas, tomando o termo Estado nesse sentido, é preciso distinguir qual a forma que o Estado tem. Isto é, qual a forma da organização política dada por ele à sociedade.
Se entendermos por Estado católico uma forma própria do Estado, como a monarquia, a aristocracia ou a democracia, falar em Estado católico é absurdo. Se por essa expressão quisermos significar não mais uma forma distinta e própria do Estado, mas qual das diversas formas existentes seja a que o Estado deve ter para ser católico, também é absurdo.
Mas podemos abstrair da forma do Estado e entender como católico um Estado com as seguintes características: reconhece a Igreja como uma sociedade perfeita superior, tendo por fim a salvação das almas; assegura plena liberdade para a Igreja cumprir a sua missão; organiza todo o seu equipamento político tendo em vista a necessária subordinação de seu fim ao fim da Igreja; penetra todas as suas leis com espírito de justiça e caridade, para se sujeitar à lei de Cristo à qual todos os homens são obrigados (inclusive, portanto, os homens politicamente organizados no Estado). Neste caso, é fora de dúvida que Estado católico é uma expressão legítima.
Será católico, portanto, todo Estado que reconhecer certos princípios fundamentais da sua organização, princípios que resultam da moral, isto é, da lei natural confirmada e reforçada pela lei divina do Cristianismo, de que a Igreja é a única intérprete infalível.
Quanto aos meios de o Estado agir na esfera que lhe é própria, pode organizar-se democraticamente ou aristocraticamente, por um regime mais autoritário ou menos, com um soberano coroado ou um presidente eleito de quatro em quatro ou de seis em seis anos. Tudo isto é indiferente para um Estado poder denominar-se católico. São questões especificamente políticas, e assim sendo a Igreja não prescreve normas para regulamentá-las.
Outra coisa é saber se uma forma política pode melhor do que outra garantir a observância daqueles princípios fundamentais com que um Estado deve cumprir a lei moral e divina. Pode haver realmente uma forma política mais adequada a tal fim, e pode essa forma ser uma em certa época e em certa sociedade, outra muito diversa noutro tempo e em diferente sociedade. A escolha depende das circunstâncias, da prudência política, e não de princípios abstratos. Sendo questões opinativas, a Igreja não exige que todos os católicos estejam de acordo. Mas todo católico deve evidentemente admitir uma série de postulados na organização de qualquer Estado, como a liberdade da Igreja, a obrigação de o braço secular auxiliar a Igreja no desempenho de sua missão, a função supletiva do Estado em matéria social, o direito de propriedade etc.
O mesmo se diga de uma política católica. O Catolicismo é religião, e não uma sociologia ou uma política. No entanto, acidentalmente compreende também princípios constitutivos da ciência política como de qualquer outra ciência social.
A política é ciência prática, e como toda ciência prática está subordinada à moral. Embora a moral seja constituída por princípios acessíveis à simples razão natural (moral natural), não pode prescindir do Catolicismo, pois a lei divina de Cristo é não só confirmação da lei moral natural, como ainda garantia de esta não se perverter.
A subordinação da política à moral implica, pois, numa subordinação da política à Religião. Mas no seu campo próprio, a política constrói todo um edifício feito de material estranho à doutrina e à ação da Igreja. Não se pode, no entanto, separar a política da moral, da religião, como fez Maquiavel e como fazem os liberais, os socialistas, os adeptos do Estado totalitário. Não se pode também estabelecer os princípios próprios da ciência política — isto é, da administração ou do governo — com princípios morais ou religiosos. Não existe, pois, uma política teológica, mas há uma teologia política; e na medida em que a política se subordina a esta, como deve ser, ela pode ser dita mais católica ou menos.
Assim, fica também resolvido o problema de saber se a Igreja tem uma doutrina política. A resposta é afirmativa, se entendermos por doutrina política os princípios que remotamente norteiam a ação dos governos, ou seja, princípios de ordem moral (teologia moral) aos quais se deve subordinar a ciência política para não cair nos erros do naturalismo político. A resposta é negativa, se por doutrina política entendermos um sistema completo de organização do Estado e do governo.
Resumindo, o campo da ciência e da ação política própria do Estado é autônomo, mas não independente em relação à Igreja. Interessa a esta porque, em qualquer parte onde o homem trate de regulamentar sua ação individual ou social, deve respeitar os princípios supremos da moralidade. A Igreja só se preocupa com as condições de felicidade temporal enquanto devem ser organizadas de maneira a não obstar, mas a facilitar a consecução da felicidade eterna.
Como todas as coisas podem servir para a nossa santificação, ou então ser empregadas em sentido contrário a ela, é claro que a política interessa à Igreja, embora a Igreja não tenha fins políticos de espécie alguma.
Em sociedades católicas, os Estados deveriam ser constituídos numa atmosfera impregnada de catolicismo, e por pessoas católicas que procurassem sempre conformar suas ações com os princípios morais e religiosos, que não consistem apenas em práticas de culto, mas representam uma orientação geral para toda a vida.
Daí a lição de São Paulo: “Instaurare omnia in Christo” (Instaurar todas as coisas em Cristo). “Omnia”, todas as coisas!
4 — Conclusões
De tudo o que vimos até aqui, podemos concluir que qualquer Estado, para ter a honra de se proclamar autenticamente cristão, ou seja, católico, deve:
- a) Reconhecer que a Igreja é portadora da verdade, dando-lhe plena liberdade de ação no desempenho de sua missão essencial, a salvação das almas.
- b) Coadjuvá-la nessa tarefa, favorecendo a ação católica e dispondo a sociedade a receber influência da Igreja por uma organização adequada em que, por exemplo, não haja perigo de se desenvolver o gérmen de doutrinas ímpias e subversivas.
- c) Organizar toda a sociedade segundo os princípios da Justiça e Caridade, de acordo com as leis de Deus e da Igreja, tanto as relações do Estado com o indivíduo, as famílias e os demais grupos sociais, quanto as relações dos indivíduos, das famílias, dos grupos entre si.
Temos aí uma gradação nos princípios temporais e espirituais da sociedade civil. Há questões puramente espirituais, e o Estado deve reconhecer que elas são da alçada exclusiva da Igreja Católica. Erra, portanto, todo o regalismo que leva o poder civil a tratar de questões eclesiásticas. Erra o liberalismo, ao relegar tais questões para a vida privada de cada indivíduo, colocando ainda em pé de igualdade todas as religiões e excluindo-as assim da vida pública. Erram, enfim, os partidários da mística do Estado comunista ou totalitário, proscrevendo a Igreja até mesmo da vida privada e transferindo para o Estado as funções espirituais.
Outras questões interessam diretamente tanto à ordem espiritual quanto à ordem temporal, e nelas a Igreja e o Estado têm cada qual a sua parte. O casamento, por exemplo, é um sacramento que produz efeitos na ordem civil. À Igreja cabe regulamentá-lo enquanto sacramento, daí as disposições do Código de Direito Canônico seguidas por todos os fiéis. Ao Estado cabe regulamentar os seus efeitos civis, não o simbolismo ridículo e sem sentido do “casamento civil”, mas as consequências jurídicas decorrentes do casamento, a transformação operada no estado das pessoas casadas, o modo pelo qual devem ser cumpridos civilmente os deveres e direitos recíprocos de marido e mulher, o regime de bens na sociedade conjugal etc.
Nessas questões, dizemos que o Estado pode e deve dispor a sociedade para receber a influência da Igreja. No caso do matrimônio, por exemplo, o Estado o faz punindo o adultério, ao invés de excluir este crime do Código Penal, conforme tendência das mais nocivas do moderno direito criminal.
Não é só pela legislação, mas também pela ação governamental, que o Estado muito pode e deve fazer nesse sentido. Um exemplo está na repressão séria e eficaz contra o comunismo, que ameaça a ordem social baseada nos princípios católicos. Aqui se deveria situar o problema da liberdade de pensamento, de imprensa, de todas as outras liberdades públicas, tão mal compreendidas depois da pseudo-Reforma [protestante] (1517) e da Revolução Francesa (1789).
Finalmente há questões puramente temporais. Por exemplo, o modo de preencher os cargos públicos, a organização da justiça e do processo, o sistema de policiamento, os planos urbanísticos e rodoviários etc. São assuntos da alçada exclusiva do Estado, mas também é mister observar neles os preceitos da justiça e da caridade, o que nem sempre acontece em alguns deles. Em nenhum campo de ação humana, individual e social pode haver assunto estranho às leis de Deus.
5 — Um trecho de Leão XIII
Tudo isto nos faz compreender a razão pela qual Sua Santidade o Papa Leão XIII, na já mencionada Encíclica Immortale Dei, refere-se à filosofia do Evangelho como inspiradora dos Estados:
“Houve tempo em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua divina virtude introduzia-se nas leis, nas instituições, nos costumes dos povos, em todas as classes, em todas as relações da sociedade civil. Então a religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, estava por toda a parte florescente, graças ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. O sacerdócio e o império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e reciprocidade amigável de bons ofícios. Assim organizada, a sociedade civil deu frutos superiores a toda a expectativa, cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos, os quais nenhum artifício dos adversários poderá corromper ou obscurecer. Se a Europa cristã dominou as nações bárbaras e as fez passar da ferocidade à brandura, da superstição à verdade; se ela repeliu vitoriosamente as invasões muçulmanas; se guardou a supremacia da civilização; se, em tudo que faz honra à humanidade, ela se mostrou constantemente e em toda a parte guia e dominadora; se recompensou os povos com a verdadeira liberdade sob as suas diversas formas; se mui prudentemente estabeleceu uma multidão de obras para a consolação da miséria — não há dúvida nenhuma de que em grande parte o deve à religião, sob cuja inspiração e auxílio empreendeu e realizou tão grandes coisas”.
OS FATOS
6 — O ideal do Estado católico na política brasileira
Nenhuma das correntes políticas brasileiras preenche as condições que enumeramos para uma política ser genuinamente católica em seus fundamentos. As forças partidárias que apoiam as candidaturas à presidência da República são todas elas heterogêneas em seus princípios ou nas pessoas que as compõem. Nos seus programas, quando existem, há pontos suscetíveis de interpretação mais favorável ou menos em relação à Igreja, prestando-se por isso tanto a uma política boa quanto má.
A situação se torna particularmente delicada pela circunstância de que as correntes ou partidos não se compõem apenas de espíritos monolíticos no erro ou na verdade. Muitos dos seus altos dignitários, ou dos seus representantes nas assembleias legislativas, frequentemente mantêm posição mal definida em relação à Igreja; e ela pode ser muito cômoda, mas nem sempre é das mais leais. De um lado, receosos da crise, voltam-se para a Igreja. De outro, presos pelos preconceitos de uma educação defeituosa, tão generalizados nos nossos meios políticos, não querem chegar-se inteiramente a ela. Daí decorre uma verdadeira proliferação, nos diversos partidos, de políticos que falam em política espiritualista ou até mesmo cristã, sem jamais enunciar um programa nitidamente católico.
No entanto, é falacioso o projeto de uma política espiritualista que não tenha por fundamento Cristo, e igualmente falacioso o projeto de uma política cristã que não tenha por fundamento a Igreja. Cristo só é visível em toda a sua exatidão através da doutrina católica; e sem essa lente de precisão, o que vemos é um cristo irreal, diminuído pela miopia da nossa inteligência ou deformado pela nossa imaginação febril. Se essa política espiritualista e cristã não for católica, só servirá para desorientar os espíritos, na melhor das hipóteses adiando uma catástrofe que não poderá evitar.
Nossos avós, abusando da palavra catolicismo, forjaram para si uma semi-religiosidade burguesa, que agradava seu espírito conservador sem os impedir de serem liberais. Os espiritualistas e cristãos de hoje são muitas vezes assim. Não querem o Cristo-Rei, mas estimariam um cristo chefe de polícia para manter a ordem sob a direção do respectivo partido. Quanto a nós, católicos, não queremos ver nas mãos de Cristo o bastão de guarda civil, mas o cetro de Rei. Queremos a civilização católica, inteira e exclusivamente católica, viva e pujante, imunizada contra todos os germens de paganismo e orientada pela Igreja que a fez surgir e lhe deu toda a sua grandeza.
7 — Não tomamos partido, mas não nos abstemos da política
Os males atuais não são apenas políticos ou econômicos, mas principalmente de ordem moral. Como ensina Pio XI, a crise é de instituições e de costumes. Enquanto não se reformarem os costumes, de nada valerão boas instituições. Em consequência do que já dissemos sobre a subordinação das atividades humanas à moral, uma ação católica é o único meio adequado para a grande reforma de costumes, um pressuposto de qualquer reforma política ou social. Isso é verdade para o mundo todo. Só a ação da Igreja poderia ter salvo o mundo antigo, perdido nas trevas da barbárie e na dissolução do paganismo greco-romano; e só ela poderá arrancar a sociedade hodierna da devassidão em que se acha, causa profunda de todos os seus males. Podemos aplicar ao mundo atual o que dizia Jackson de Figueiredo: “O Brasil está tão perdido, que só uma ação puramente católica o poderá salvar”. Hoje, mais do que nunca, só uma política baseada no Catolicismo poderá dar solução cabal aos problemas sociais. Depende, portanto, de o Estado contribuir na sua esfera própria para a grande obra de recatolicização.
Não encontramos no Brasil uma corrente política cujo programa satisfaça o ideal de uma sociedade fundamentalmente católica, que é a mais necessária de todas. Assim sendo, e sem podermos coadjuvar eficazmente esse inexistente programa de ação católica, não podemos tomar partido na atual situação política brasileira. Os diversos partidos políticos merecerão a nossa crítica — sincera, leal, enérgica se preciso for — na medida em que se distanciarem dos princípios católicos. Merecerão os nossos mais francos elogios as atitudes e medidas que tomarem, e que possam coincidir com os anseios de uma política assente em tais princípios.
Sem visualizarmos nas correntes políticas brasileiras o lugar para militarmos por uma política genuinamente católica, nossa atitude continuará a de aplaudir tudo o que é bom e censurar tudo quanto não presta. Assim, premuniremos o público e manteremos a opinião católica informada da situação de nossa política em face do Catolicismo. Evitaremos assim que ela se deixe levar pela sereia dos caçadores de votos, ou pela ilusão dos que julgam possível os nossos partidos satisfazerem todos os reclamos de uma consciência católica bem formada.
Abstendo-nos de tomar partido, não nos abstemos de fazer política. Pelo contrário, faremos a única realmente capaz de conduzir a um Estado católico.
Para os redatores do “Legionário”, entrar num partido político não seria o melhor meio de atuar na boa orientação da opinião católica. A disciplina partidária nos impediria de criticar esse partido quando fosse preciso, e as nossas críticas poderiam levar-nos a perder a confiança dos seus mentores. Consequentemente, perderíamos a possibilidade de influir eficientemente no sentido de orientar o partido segundo os rumos da política que desejamos ter. Além disso, forçosamente seríamos considerados suspeitos pelos católicos neutros ou pertencentes a outros partidos.
Na ausência de uma grande corrente partidária que corresponda ao nosso ideal político, julgamos não nos devermos filiar a nenhuma das correntes atualmente em choque na vida política brasileira, para fazer do “Legionário” o observador imparcial capaz de auxiliar a imprimir à opinião católica a orientação que ela deve ter. Assim poderemos consagrar-nos inteiramente ao trabalho penoso e delicado, conquanto imensamente eficaz, de colaborar eficientemente na formação da opinião política dos católicos no verdadeiro sentido da Igreja.
Para colaborarmos nessa formação, antes de mais nada é preciso suscitar um justo e indispensável descontentamento entre os católicos, diante da situação política brasileira. Contentando-se com o que lhes oferecem as forças políticas atualmente existentes no Brasil, será vão e não encontrará eco todo trabalho em prol de uma reforma política no sentido católico. É preciso que os católicos percebam e sintam os males existentes nas organizações político-partidárias. E sentindo-os, não se poderão dar por satisfeitos.
Diante do esplêndido tesouro doutrinário de que a Igreja é escrínio, o católico não se pode cingir à estéril atitude de uma admiração meramente especulativa. Não basta esse primeiro trabalho de remoção de obstáculos, sobretudo é preciso construir. Cumpre-lhe agir com todas as suas forças para que tais princípios tenham a mais larga e mais minuciosa aplicação.
No laicato católico encontram-se pessoas com uma noção teórica bastante exata da doutrina social católica. Mas é uma raridade encontrar quem tenha ideias precisas e sistematizadas sobre o modo concreto e objetivo pelo qual os princípios de tal doutrina se devem aplicar entre nós. E a razão deste gravíssimo mal, capaz de inutilizar ou prejudicar gravemente os frutos de longos anos de apostolado, é a ignorância da famosa “realidade brasileira”, tão falada, porém tão ignorada. Com os olhos voltados para a realidade brasileira, o “Legionário” procurará, tanto quanto possível, conhecer objetivamente nossas condições políticas, econômicas e sociais.
Sendo nossa obrigação aplicar ao Brasil os princípios católicos, precisamos procurar conhecer o ambiente em que devem ser aplicados tais princípios. É esta a tarefa fundamental que temos diante de nós, se queremos transportar do plano dos sonhos para o das realidades o ideal de um Brasil católico.
10 — Em face da política
Passando do terreno social para o político, podemos fazer uma pergunta análoga: Em que medida podem os católicos contar com os homens ou os partidos do Brasil, como instrumentos da construção de uma grande nação católica?
A importância da questão é óbvia. Mas os redatores do “Legionário” não podem, por suas próprias forças, preencher em um dia uma lacuna em que não se trabalhou durante anos. Ante a impossibilidade de levar a cabo imediatamente essa grande tarefa de pesquisas sobre a qual queremos alicerçar nossa obra, iniciamos desde logo um trabalho de esclarecimento sobre a questão que encabeça este tópico, por ser este um trabalho de mais fácil realização imediata.
Dia por dia, em um esforço informativo imparcial e completo, vimos comentando as atitudes dos homens de nossa vida pública. Através de numerosas cartas mantidas em nosso arquivo, sabemos quanto este trabalho tem sido proveitoso para a orientação e esclarecimento de nossos leitores.
Pela sua finalidade essencialmente construtiva, essa tarefa não poderia deixar de ser considerada uma contribuição útil à causa católica. Assim, pelo menos, sempre o entendemos nós. E assim também o entende a Autoridade Eclesiástica, que nunca nos regateou a expressão espontânea e carinhosa de sua particular benevolência.
Assim não entenderam, entretanto, alguns de nossos leitores que, numa época em que toda a imprensa do País ressoa com críticas merecidas à decadência do nível moral de nossa política, talvez quisessem que o “Legionário” fechasse os olhos à realidade. Se pode ser considerada demolidora uma obra severa e imparcial de análise como a nossa, toda ela feita com o fito de facilitar a construção de um Brasil católico, é o caso de dizer-se que não existe obra construtiva no mundo; e até o médico que ausculta o paciente, e lhe analisa os males antes de receitar o curativo, faz também obra de destruição!
Não somos, não queremos ser demolidores. E convidamos todos os que nos criticam a participar da difícil e pesada tarefa construtiva; a cooperar conosco para arquitetar um plano de ação, a fim de se realizar entre nós uma política orientada segundo os princípios católicos, não se limitando apenas ao trabalho de críticos.
À vista desta exposição de motivos de nossa atitude, que é ao mesmo tempo um clamor dirigido a todos os católicos do Brasil sobre a necessidade de compreenderem e praticarem melhor seus deveres políticos, muitos talvez objetarão o seguinte: diante do perigo iminente do comunismo, que ameaça a civilização e o Brasil, não devemos perder nosso tempo com distinções bizantinas e discussões inúteis (é assim que costumam qualificar todas as discussões que não lhes convêm), mas sim fazer frente comum com aqueles que realmente combatem o comunismo.
Negamos a qualquer partido o monopólio da ação anticomunista. E por mais iminente que fosse o perigo comunista no Brasil, ele não seria de molde a nos obrigar a uma atitude em que seríamos forçados praticamente a abdicar de nossas convicções para nos abrigarmos à sombra protetora de uma entidade messiânica.
Será essencial e decisiva a contribuição da Igreja para a grandeza futura do Brasil, em suas diretrizes de ação católica. De tal forma que não se pode qualificar, como perda de tempo em discussões bizantinas, proclamar clara, positiva e decididamente que os mais graves problemas do Brasil moderno só poderão ser resolvidos pelo Catolicismo e pelos católicos como tais. Esclareceremos sem desfalecimentos a opinião pública do País sobre a inocuidade de qualquer sucedâneo que se pretenda apontar em lugar do Catolicismo.
Na situação atual do Brasil, o melhor remédio contra o comunismo é estarem os católicos de sobreaviso, conscientes do real valor do Catolicismo, esclarecidos na fé e unidos pela mais estrita obediência à Igreja. E os católicos só estarão de sobreaviso contra qualquer inimigo da religião e da pátria no dia em que começarem a confiar mais na Igreja e menos nos homens. Trabalhamos pelo advento desse dia, certos de que ele não tardará, confiando-o sempre aos planos da Divina Providência.