Manifestações contra a corrupção imperante no Kremlin reuniram em março muitos milhares de pessoas em quase cem cidades da Rússia. A aglomeração e a multiplicidade de locais deixaram espantados a opositores e situacionistas.
O Kremlin que sabia do mal-estar espalhado na Rússia, entretanto, não conseguia esconder o pasmo diante da dimensão do protesto. Surpreso também ficou Alexei Navalny o dissidente que convocou as marchas.
Alexei Navalny e por volta de 700 seguidores foram presos pelo aparato repressivo enquanto os manifestantes foram atacados com gás pimenta e cassetetes segundo a organização OVD-Info.
Para a polícia “só” 500 foram encarcerados. O recurso à brutalidade com os opositores não é novidade na Rússia nem para uns nem para outros.
Navalny havia publicado um relatório acusando o primeiro ministro Dmitri Medvedev de liderar um império imobiliário em benefício dos chamados oligarcas que rodeiam ao presidente Vladimir Putin.
O vídeo sobre o inquérito e a corrupção das elites foi visualizado 11 milhões de vezes em YouTube antes das marchas populares, noticiou “Le Figaro”de Paris.
As manifestações populares foram proibidas pela polícia em 72 das 99 cidades previstas. Mas os populares saíram em massa até em cidades de província onde não se podia suspeitar tanto descontentamento como Irkutsk, Tomsk, Krasnoiarsk, ou Novossibirsk na Sibéria, acrescentaram “Le Fígaro” e o “The Wall Street Journal”.
Em Moscou, os manifestantes encheram a rua Tverskaïa, uma das principais avenidas da capital.
“O país todo está farto da corrupção”, disse Natalia Demidova, 50 anos. “Eles roubam e mentem, mas as pessoas são pacientes. Esta manifestação é o primeiro impulso para as pessoas reagirem” comentou Nikolai Moissei, operário de 26 anos.
Em São Petersburgo, segunda cidade da Rússia, 4.000 pessoas se reuniram malgrado a proibição e as ameaças da polícia presente em até excessivo número.
“Estamos fatigados pelas mentiras, é preciso fazer qualquer coisa”, explicou Serguei Timofeiev, 23 anos.
O líder oposicionista Navalny foi preso com violência, mas ele achou isso “compreensível”: “os ladroes se defendem desse jeito. Mas eles não podem prender todos os que são contra a corrupção porque são milhões”, reportou o jornal parisiense.
As TVs em mãos do Estado guardaram perfeito silêncio sobre os eventos.
O “The Wall Street Journal” informou que as multidões cantavam “Rússia sem Putin” inclusive diante do ministério da polícia.
A rádio “Eco de Moscou” falava em multidões muito maiores dos milhares reconhecidos pela polícia.
O mal-estar na Rússia está em aberta contradição com as enquetes oficiais que atribuem a Putin mirabolantes índices de popularidade.
O Departamento de Estado em Washington se contentou com uma severa condena da violação dos direitos humanos acontecida, mas, como é habitual em relação aos governos de esquerda não foi além do exercício verbal.
“Bandido deveria estar no cárcere”, repetia com o coro geral Anna Tursina em Moscou. “Não gosto da Rússia que nós temos e da turma que está no poder. Não há dinheiro para a educação, a ciência, as crianças, mães e anciões”, acrescentou.
O “New York Times” comparou os protestos na Rússia com as manifestações havidas no Brasil pelo impeachment de Dilma Rousseff e em apoio à Operação Lava Jato.
“Jovens deixam apatia e assustam Kremlin” foi uma das manchetes do jornal nova-iorquino, citado pela “Folha de S.Paulo”.
Um dos fatos mais surpreendentes até para os líderes dos protestos foi a juventude dos presentes: grande número era composto de adolescentes ou jovens na faixa dos 20, observou “The New York Times”.
Para o jornalista Artyom Troitsky que acompanhou muitos anos a cultura jovem russa, o engajamento da juventude nos protestos foi “excepcionalmente importante”. Eles saíram da apatia e isso é sinal de que “algo está mudando definitivamente”.
O jornal pro-socialista “El País” de Madri, constatou o fenômeno com amargura no editorial “Cansados de Putin”. Para ele os eventos marcam a recusa do autoritarismo vivido pela Rússia sob Vladimir Putin.
Astuciosamente, o jornal de esquerda recomendou ao presidente russo não ignorar o descontentamento de incontáveis russos e não se limitar a acusações e medidas repressivas contra o dissidente Navalny.
Essas lhe poderiam resultar contraproducentes em virtude das contundentes provas apresentadas por Navalny sobre o império imobiliário de Medvedev, financiado por oligarcas e outros interesses obscuros.
“El País” observou a “constante ingerência russa nos processos democráticos atuais e na política dos países da Europa”, e até na campanha eleitoral dos EUA. E observou com interesse preocupado o fato de que “Putin se vincula com forças reacionárias, como as representadas por Marine Le Pen na França e Viktor Orbán na Hungria”.
O jornal socialista lhe recomendou “regenerar um sistema que se distancia cada vez mais dos usos democráticos, em vez de tentar influir em outros”.
E aconselhou Putin não se enganar com o silêncio a que foi reduzida a sociedade russa. Porque, “dentro e fora do país, aumenta a saturação em relação a Putin”, concluiu.