Ponha o papel (ou o líquido) do tornassol na solução. Teste simples, para pH entre 4,5 e 8,3, mostra de cara se alcalino ou ácido o meio. Ficou azul? Alcalino. Avermelhou? Ácido. O tornassol fica vermelho em baixas concentrações de pH; coloração azul, pH lá em cima. Simples assim.
Fazemos testes de tornassol a toda hora. Uma pergunta ágil, como resposta um silêncio por vezes constrangido e já supomos (em geral na mosca), por onde caminham preferências do interlocutor — mais azuis ou chegadas ao vermelho. Nos mais variados ambientes, é dos mais empregados recursos de orientação. Também simples assim.
Gestos, atitudes, insinuações, olhares, silêncios (tantas vezes mais que palavras claras e posições inequívocas) delatam disposições interiores, desmascaram intenções, expõem situações até então ocultas. Lembro ainda, no mundo oficial, de modo particular, o abuso escandaloso dos eufemismos (o emprego correto tem vantagens óbvias). Os grandes políticos nas suas guerras sem tréguas são mestres na artilharia dos eufemismos. Quando o emprego de tais recursos favorece só um rumo, temos claro ora um padrão de conduta, ora uma mentalidade, ora uma diretriz.
Proponho hoje meu teste de tornassol para ser utilizado como meio de esclarecimento. Não é de hoje acompanho com um pé atrás o noticiário relativo a visitas políticas e empresariais à China. Nelas transparece sempre o compreensível receio de retaliações do governo chinês que possam vir a lesar o enorme superávit comercial com a China, bem como possibilidades de investimento e de crescente comércio. As presentes disputas entre Pequim e Washington tornam ainda mais candente o quadro.
Para que não despenque logo sobre mim uma saraivada de acusações sem base, repito abaixo o que escrevi em dezembro de 2018 em artigo intitulado “O chinês mais rico do mundo”:
“Não estou obcecado, procuro o contrário, que todos vejam […]. Nem sou catastrofista. Busco evitar a catástrofe, apontando a pirambeira no caminho. E nem vou repetir razões já por mim expressas vezes sem conta. Acho que deve haver comércio com a China, é sensato aproveitar oportunidades comerciais, temos que considerar sempre necessidades e conveniências da economia brasileira, mas é imperioso, para mantermos de fato a soberania e possibilidades de futuro digno para filhos e netos que saiamos gradualmente da armadilha — dependência excessiva e suicida da economia chinesa —, fruto sobretudo da política entreguista do período lulopetista. Como? Em especial, martelo, fortalecendo laços econômicos com Estados Unidos, Japão e Europa. Sem o apoio dos Estados Unidos, muito dificilmente escaparemos da enrascada na qual nos metemos por dessiso, irreflexão e leviandade”.
O presente, agora. Todas as notícias enviadas da China nas últimas semanas sobre a passagem por lá de autoridades e empresários brasileiros falam que houve contatos com empresários e investidores chineses interessados em investir no Brasil. Transcrevo parte de uma, que ilustra bem o tom:
“A ministra […] apresentou dados do setor agropecuário e áreas com potencial de crescimento para um grupo de 40 investidores chineses com projetos no Brasil, nesta segunda-feira, 13 [de maio], em Xangai, na China. O encontro foi organizado pelo Banco do Brasil em parceria com o consulado brasileiro. Os investidores informaram que pretendem aumentar o montante aplicado no Brasil, em setores de sementes, suinocultura, infraestrutura e ferrovias”.
Procurei com esmero nos sites do Itamarati e do Banco do Brasil o nome dos 40 grupos econômicos, empresas e investidores convidados. Nada encontrei, nenhum nome. Isto poupou um desconforto aos promotores da viagem. Estou certo, todos os 40 convidados, os tais empresários e investidores (para ser cordial, pelo menos a esmagadora maioria deles) são empresas estatais. Se houver algum grupo privado entre os 40, até poderia ser, não dará um espirro sem a anuência do governo e do Partido Comunista Chinês.
Foi oferecido a eles (ou a elas, as estatais) como amostra de possibilidade de investimento em obras ferroviárias na Ferrogrão entre Sinop e Itaituba, projeto orçado em 3,7 bilhões de dólares, com edital previsto para fins de 2019. Outra obra, a Fiol que ligará Ilhéus a Figueirópolis; mais uma, ferrovia Norte-Sul. Não há total, serão dezenas de bilhões de dólares lançados ao apetite voraz de estatais chinesas em leilões, concorrências e parcerias. Significam compra de ativos e concessões para muitas décadas em obras de infraestrutura.
Em nenhum momento, em nenhuma notícia, em nenhum comentário as expressões eufemísticas “investidores chineses”. “empresários chineses” ou “capitais chineses” foram trocadas por palavras que traduziriam realidade óbvia e incontestável: o Brasil estava oferecendo oportunidades de negócio para estatais chinesas. Poderia ser item, de um lado, de nova iniciativa, o Programa Transparência Zero. De outro, parte do espetacular Programa de Privatizações à Brasileira.
Vou dar um exemplo, fato quente. Enquanto redigia o presente artigo lia notícias veiculadas pela imprensa relativas à construção de aciaria em Marabá, no Pará, investimento de R$1,5 bilhão, com produção destinada ao mercado interno. A Vale vai financiar o empreendimento, a Concremat será sua proprietária e o executará. Começará a operar em 2023. A Concremat é controlada pelo grupo chinês CCCC (China Communications Construction Company). Em nenhuma notícia constava a informação de que a CCCC é estatal chinesa. No português claro, o governo comunista de Pequim vai ter uma aciaria importante no estado do Pará. Os brasileiros não têm direito de conhecer tal informação? Não é relevante? Mais uma realização do Programa Transparência Zero associado ao Programa de Privatizações à Brasileira.
Coloco os fatos acima ao lado de outra realidade ululante: as estatais chinesas são dirigidas por inteiro pelo governo chinês. O governo chinês, imperialista, coletivista, tirânico e ateu é dirigido de alto a baixo, por dentro e por fora, pelo Partido Comunista Chinês (PCC). Os diretores das estatais são na esmagadora maioria dos casos (e em todos os postos decisivos) membros do PCC, com fidelidade canina às diretrizes governamentais e partidárias.
Continuamos a pisar, dói dizê-lo, as veredas da tragédia anunciada, a servidão. Permito-me lembrar afirmações minhas em “O realejo estridente” de dezembro de 2018:
“Desde 2003 até hoje, segundo a Secretaria de Assuntos Internacionais (SEAIN) do Ministério do Planejamento em 269 projetos houve investimentos chineses anunciados e confirmados de 124 bilhões de dólares. Desse total, segundo o Conselho Empresarial Brasil-China, 87% foram de origem estatal, 13% de origem privada. Vou, de novo, escrever o que ninguém ou quase ninguém põe no papel com clareza: esses 87% é dinheiro de empresas estatais chinesas, que trabalharão pelos objetivos do PCC, e cujos diretores se alinham sempre com a estratégia do partido. Os 13% restantes, via de regra, são de empresas que acertam o passo com o governo chinês”.
Entre outras políticas reveladoras a China apoia na Ásia a Coreia do Norte e na América Latina as ditaduras de Cuba e Venezuela. Maduro não caiu ainda, em parte por causa do apoio chinês. Tivesse Fernando Haddad ganho as presidenciais de 2018, teríamos agora a aliança Rússia-China-Brasil para defender a tirania venezuelana. Seria uma primeira manifestação da aviltante sujeição brasileira aos objetivos chineses, que nos ameaça.
O Brasil não está recebendo capital chinês. Ou, por outra, está recebendo maciço capital chinês estatal. Já é enorme sua presença na infraestrutura. Aqui não vale o mantra dos “setores estratégicos” que devem permanecer em mãos do Estado? Estão sim, mas cada vez mais nas mãos do Estado chinês.
Tudo isso é verdade. Não obstante, aqui vai minha previsão fácil (fiz outras de igual teor, acertei todas), nada vai mudar nos discursos e nos comentários dos meios de divulgação. Vamos continuar a escutar e ler “investidores chineses”, “oportunidades de investimento de capitais chineses”. Não leremos nem ouviremos a realidade inquestionável: é dinheiro de estatais chinesas.
A razão salta incoercível: na prática, mentalmente, em largas faixas falantes, da opinião que se publica, já temos as reações de protetorado chinês. Caminhamos rumo a situação parecida com a da Finlândia da época da Guerra Fria, formalmente soberana, na verdade protetorado efetivo da União Soviética. Finlandizados já também estamos nós em certa medida. A Finlândia não soltava um pio contra os interesses de Moscou. Ainda há tempo para tomar rumo oposto.
Meu teste de tornassol. Quem, ao tratar de economia, soberania, interesses estratégicos, independência nacional, nunca se refere com preocupação à presença crescente das estatais chinesas na economia brasileira, evidencia que mentalmente já vive em atmosfera de protetorado. Tem necrosado o amor à independência brasileira. Quem, ao ventilar os mesmos assuntos, pelo menos de quando em vez faz o contrário e se refere a tal presença, apontando perigos, ainda se vê como cidadão de país soberano. Deu vermelho? Meio ácido, dominante no espírito o complexo do protetorado. Deu azul? Meio alcalino, dominante na alma o ar fresco da soberania.